Por Nelson Moraes
Pretendendo estabelecer um equilíbrio no debate político brasileiro, manifestos como o editorial da Folha só servem a quem não se compromete com o equilíbrio.
Albert Camus já prescrevia que, no teatro das conflagrações políticas, as vozes do bom senso sempre erram a hora de entrar em cena. No último dia 4 a Folha de S. Paulo publicou um editorial – com viés de “chamada à razão” – pretendendo ecoar essas vozes.
São, sim, as mesmas vozes que procuraram minimizar os pressentimentos que no final de 2022 já davam conta do apocalipse do 8 de janeiro do ano seguinte. “É a esquerda exagerando”, preconizavam tais vozes. Pois bem, chegou o dia e o esperado aconteceu: a barbárie comeu solta e veio à luz a agenda por trás de tudo, que envolvia um já comprovado plano de golpe de estado, além de sequestro e assassinato de autoridades do Executivo e do Judiciário.
Corta para três anos depois, com o STF procurando salvaguardar as instituições ameaçadas por um país estrangeiro, que impôs sanções arbitrárias violando a natureza do intercâmbio diplomático e cujo pretexto foi blindar um ex-presidente criminoso e seus asseclas (o substantivo caricato – e meritório – abrange seguidores e familiares). “É o Judiciário extrapolando”, ponderaram as tais vozes do bom senso. Pois bem, na última terça, dia 5, a frente da extrema-direita no Congresso ocupou a Mesa Diretora da Câmara para obstruir os trabalhos parlamentares, ameaçando não liberá-la até que fosse votada a anistia aos golpistas, o perdão ao ex-presidente criminoso e o impeachment do ministro Alexandre de Moraes.
É fato que a coisa, ou como se queira chamá-la, não tem volta. Mesmo que seja debelada essa patética tentativa de sequestro da pauta do Congresso (até o momento em que escrevo, a pantomima prossegue), a bola de neve irá crescer em outros cenários, em outros bastidores, em outras instâncias – porque seus protagonistas não irão se conformar ao ver as barbaridades daquele não tão longínquo e nefasto 8 de janeiro sendo exemplar e constitucionalmente punidas.
O citado editorial da Folha, arvorando-se em arauto das tais vozes do bom senso, não procurou pôr panos quentes na atuação do Judiciário. Pior – buscou colocar panos frios. A intenção foi, em nome de um “equilíbrio retórico”, de uma imaginada simetria entre os “tiranos” e os “democratas”, estabelecer que os democratas não podem tomar medidas coercitivas extremas, mesmo que à altura da gravidade da situação, sob pena de equivalerem-se aos tiranos. Uma configuração efêmera a ponto de jamais encontrar eco na realidade. Uma filosofada acadêmica que constrangeria qualquer agente da realpolitik. Uma colocação artificialmente equilibrada: vemos o médico duplicar a dose da medicação para fazer frente à inflamação que cresce inesperadamente e põe em risco o organismo – e somos informados de que a culpa é do médico, que com isso se rebaixa à mesma condição do agente patogênico.
Essas “vozes do bom senso”, relativizando na hora errada e mirando os alvos equivocados, prestam-se à condição de luminares na formação de opinião mesmo comprovando o quanto – e quantas vezes – erraram e erram na entrada do palco. Afirmar que a barbárie e a civilização gozam das mesmas prerrogativas de juízo não passa de pseudo–iluminismo. E que, claro, sempre receberá seus holofotes.
Mais vale o existencialismo de Camus. Que, se desconfiava dos democratas, sempre abominou os tiranos, estivessem eles julgando ou sendo julgados.